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domingo, 21 de agosto de 2011

A de verdade - Tati Bernardi



Eu sei que ele dormiu aí com você, sua puta, piranha, vaca, vagabunda. E desligou na minha cara. Péssimo jeito de acordar. Nunca fui amiga da garota e nem ia com a cara dela. Se quisesse xingar alguém, que xingasse o peso morto que roncava ao meu lado. Esse sim tinha aprontado. Eu não. Eu só estava com medo de atravessar a cidade inteira para voltar a pé para o meu hotel e pedi uma ajuda. Que virou um beijo numa pracinha com vista para a Costa Azul. Que deu naquilo. O peso morto que agora roncava ao meu lado. Deu naquilo. E na pobre namorada no Brasil que devia ter passado a noite em claro ligando no celular dele, no hotel dele, no celular dos amigos dele, no hotel dos amigos dele, até chegar, as duas da tarde, no número do meu quarto. E me acordar. Com a voz entre o pato choroso e a gralha assassina. Mas o que eu tinha a ver com isso? Homens traem, querida. Você não quis ter um namorado? Azar o seu. Eu pensei. Na época. Época em que eu não namorava ninguém nem amarrada. Preferia essa vida mesmo. Os pesos mortos dormindo ao meu lado e eu controlando o mundo. E as histéricas querendo morrer em outro oceano. Ser a outra. Eu sempre fui a outra. Com a sensação maravilhosa de passar o mundo para trás. Eu nunca fui chata a minha vida inteira. Eu era a gostosinha do trabalho. Pra morrer de rir na hora do almoço porque posso ser muito divertida com minhas histórias. Pra transar no fim do expediente sem cobranças e com direito a brincadeiras malucas na banheira. Ninguém nunca me largou, viu minhas remelas ou choros desesperados. Quem larga uma mulher assim? Quem enjoa de uma mulher assim? Quem não fica louco por uma mulher assim? A parte chata, deixava para as outras. A cor do piso do banheiro. A dor de estômago domingo de madrugada. O medo do desgaste. A loucura do amor entortando bocas, sobrancelhas e até o caráter. O papo mais difícil sobre aquele assunto mais pesado. As outras que fizessem esse papel. O meu papel era ser somente engraçada e carinhosa, pedir carona em noites românticas, dividir horas agradáveis falando de filmes e livros no almoço e de vez em quando, quando valesse a pena, mostrar meus dotes de massagem por aí. Quem esquece uma mulher assim?
Acorda aí peso morto. Sua dona acabou de ligar, falou meia dúzia de finesses pra mim e desligou. Vai lá resolver esse problemão enquanto eu e meu pijama mínimo dormimos mais um pouco. Vai. O cara ia. Sempre olhando pra mim com um cantinho de vontade de nunca mais sair de perto de alguém tão calma e feliz. A outra. As outras são sempre calmas e felizes. O lado bom da vida que não cobra, não dói. Só dá prazer.
Sempre me diverti em restaurantes. Aquelas mulheres que entram cheias de si com seus respectivos. E eles todos se acabando de olhar para as outras mulheres. Para mim, inclusive. E eu provocava. E gostava de saber que morava desse lado da moeda. Do lado do podre. Do lado que todo mundo teme. Do mundo que ninguém comenta. Mas desconfia. Do segredo universal. Da coisa que é melhor não tocar. Do deixa pra lá. Eu gostava de estar do lado que todos morreriam pra saber. Na curva onde todo mundo derrapa. O cochicho que você se mata pra ouvir. A conversa cifrada. O segundo que você acha que viu, mas pode ser coisa da sua cabeça. Eu pertencia a esse universo prive da verdade absoluta e sem maquiagem. Que poder eu sentia. Pobres coitadas todas as oficiais, se eu quiser, fizer direito, amanhã mesmo ele arruma uma dermatologista pras sete da tarde. Desliga o celular. E você. Seu azulejo branquinho. Suas técnicas para um domingo fora da rotina. Seu molho de maracujá. Vão tudo pro caralho. Porque o que eles querem, de verdade, pobres mulheres comprometidas, é qualquer coisa que não sejam vocês. Por isso, nada adianta, não é mesmo? Assim eu pensava. Naquela época. Época em que nenhum homem do mundo me achava chata ou louca ou mala ou enjoativa. E eu ria, ria delas, de todas elas. As encontrava na Fnac com seus anos e pesos e filhos a mais do que eu. E ria. Seu namorado, seu marido, seu amor, ficante fixo, qualquer coisa séria. Sabe ontem? A tarde? De manhã? A noite? Pois é. E você acreditou mesmo que era ensaio, academia, dentista, massagem na Luisa Sato ou jantar com aquele amigo de mil anos que ele não via?
Era bom. Engordava, fortificada, dormia serena. A outra. Que saudade dela. Foi embora. Morreu sufocada por uma vontade maior que nasceu em mim. A de ser a de verdade. A de ser a escolhida pra viver uma história e não pra gozar ou rir em horários encaixados. A de correr o risco de cair de algum lugar muito alto e longo e precioso. Correr o risco de sentir e não brincar de sentir. De bancar uma história que não acaba quando o despertador do motel toca. De conseguir amar, mesmo com o pavor que isso causa. De conseguir sorrir mesmo com tanta raiva e ódio de amar. Que saudade de ser sempre a divertida. Agora, sou eu, assustada, ingênua, que entro cheia de mim nos restaurantes e morro de medo dele olhar para o lado. Agora sou eu (e só agora entendo todas aquelas mulheres) que vejo ele olhando e descubro que isso é um pó perto de tanta coisa linda. Agora sou eu sabendo dos jantares, das ruas escuras, das mil armadilhas e nomes que eu nunca vou saber e nem poderia cobrar. Enlouquecendo. Agora sou eu na Fnac, mais velha, querendo ter anos e pesos e filhos a mais que as garotas tateando a vida. E com pena dessas garotas, controladoras, que quase sempre, usadas, continuam solitárias enquanto eles voltam para o que realmente tem importância. Suas mulheres de verdade. O amor que luta pra sobreviver porque é só pelo o que vale a pena lutar.
Desculpa garota do telefone. Desculpa. Eu era mesmo uma puta, piranha, vaca, vagabunda. Mas agora, sou só a mesma imbecil que você. Que todo mundo. Mais cedo ou mais tarde. Que todo mundo. Porque quem disse que eu não preferia continuar fugindo do amor? Mas ele vem, ele chega, invade, grita por comida, te enche o saco, fede fumaça, mas é lindo, é a melhor coisa do mundo. Faz tudo valer. Faz você se quebrar inteira pra colar de novo de um jeito possível de relacionar. Dói tipo nascer, e eu sei disso mesmo não lembrando.
É fácil não ter medo de altura quando se vive subterraneamente. Agora, eu sei, posso cair, e o vento na cara, gelado, vertigem, enjôo, desespero, que medo, dá até pra morrer mas é assim que, acho eu, se vive com coragem.